Opinião
Fragmentos
Jornalista Pablo Rodrigues faz uma reflexão a partir da tragédia com a Chapecoense e o que o futuro espera de cada ser humano
Em A menina de lá, conto de Guimarães Rosa, a menininha, toda-doida, toda-santa, a certa altura, sobre o que a colocava tão quieta, responde: “E eu? Tou fazendo Saudade.”
Só faz saudade quem ama. E só muito ama quem primeiro foi amado.
Na mesma toada, com poesia e sem Descartes, o papa Francisco – no seu mais recente documento oficial, a carta apostólica Misericordia et misera – (des) argumenta: “(...) sou amado, logo existo.”
Volte-se a Guimarães Rosa, ele que, a poucos dias de sua morte, obviamente sem saber, no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), disparou frase lapidar: “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas.”
Entre tanta dor espalhada pelo ar, talvez haja poesia demais até aqui, neste texto aparentemente desconexo – mas poesia pode ser o estranho e rarefeito modo, terapêutico, de se defender quando o bruto e absurdo da vida se apresenta, assim, inteiriço e inesperado: gado e flor e gente, à cata de água, em agonia, pela terra seca. A face inacreditável e prematura da morte. O tempo antes do tempo.
É preciso saber sofrer.
“Refresca teu coração. Sofre, sofre, depressa, que é para as novas alegrias poderem vir.” Ave, palavra!
Chapecó.
O que antes era apenas uma cidade perdida no oeste catarinense, agora parece ser um encontro dentro da gente – esses mistérios todos: há gente dentro da gente. E havíamos esquecido.
É preciso saber lembrar.
“O que lembro, tenho.”
Se a tragédia fez chorar, fez também acreditar.
A Colômbia parece mais linda, mais próxima. Lugar para existir, para ser.
Andávamos extraviados, um tanto sombrios. E da dor, inúmeras luzes, antes tímidas e esparsas, reuniram-se a ponto de nos fazer querer entender que, sim, somos feitos da mesma espécie, de carne, osso, misérias e sonhos. Sim, somos, radicalmente, iguais. Humanos. Nascidos de mulher. E dispostos ao encontro com o outro.
“Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato para chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz para cânticos de festa...”
A vida pode – e precisa – ser mais simples.
Bater osso no prato aos domingos. Existir em meio a tudo. Em meio à tristeza, muitas vezes, de ser o que se é: um emaranhado de imperfeições.
A vida pode – e precisa – ser mais simples.
Que a evitável tragédia com a Chapecoense, fruto da irresponsabilidade e da ganância empresarial de um homem, possa continuar a nos lembrar do fundamental: em essência, somos todos iguais.
Cabe-nos fazer com que o mundo se torne, verdadeiramente e para todos, mais igual.
Foto: Julio Cavaleiro - Secom
Carregando matéria
Conteúdo exclusivo!
Somente assinantes podem visualizar este conteúdo
clique aqui para verificar os planos disponíveis
Já sou assinante
Deixe seu comentário